sábado, 4 de dezembro de 2010

Assédio Moral

Já pensei por isso. Por falta de informação, sofri muito.
          O grave nisso tudo é que, diferentemente do que acontece com os riscos físicos de determinados ambientes de trabalho, como exposição a poeiras e gases que provocam doenças pulmonares ou más condições de segurança, que aumentam os acidentes de trabalho, a pressão psicológica é invisível. Portanto, é impossível medi-la a não ser a partir de suas conseqüências sobre a mente e o corpo de quem trabalha.
      Muitas vezes, inclusive, a pior opressão vem de atitudes aparentemente bobas, mas tão comuns que sua descrição transformou em best-seller na França o livro Assédio Moral, a Violência Perversa no Cotidiano, da psicanalista Marie-France Irigoyen. Lançado em 1999, o livro já vendeu quase 400.000 exemplares e foi editado em quinze países – inclusive aqui, pela Bertrand Brasil. O sucesso se deve à narrativa de situações pelas quais a maioria das pessoas já passou. Como num filme de terror, uma situação aparentemente inofensiva vai se tornando perigosa e assustadora. Num primeiro momento, as pessoas envolvidas tentam ignorar as agressões que recebem. Em seguida, os ataques vão se multiplicando e a vítima se vê acuada, aniquilada, sem forças para reagir diante da pressão de alguém mais forte e poderoso. “Não se morre disso, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada noite, exausto, ofendido, deprimido. E é difícil recuperar-se”, diz a autora.
 A recuperação é tão difícil que muita gente não consegue. A bancária Maria Antônia Rebelo acabou incluída no plano de demissão voluntária (PDV) do Santander depois de 23 anos e meio de serviço, iniciado com um concurso para o Banespa. Foi no Banespa que Maria Antônia conheceu um chefe tirano. Agora, aos 44 anos, ainda vive à base de antidepressivos e chora toda vez que se lembra das humilhações por que passou. Antônia foi afastada da função de caixa no Banespa porque desenvolveu uma tendinite. Seu chefe a ridicularizava por causa da doença, dizendo que ela estava inventando motivo para não trabalhar. E começou a transferi-la de setor, sempre sob a alegação de que não estava dando certo. “Acabei acreditando que era incompetente, ou louca”, conta Antônia. É uma reação comum, diante de um cerco cada vez mais fechado, o subordinado acabar se comportando de maneira a justificar a punição. Numa situação de crise, o indivíduo pode reagir dando o melhor de si para achar soluções. Mas, numa circunstância em que tem de provar que é bom apesar de estar pressionado e inseguro, ele só vai conseguir mostrar a própria fragilidade, expor os próprios defeitos. Acaba dando razão ao chefe que o considera incompetente e acrescenta mais um item a seu rol de motivos de sofrimento: a vergonha. “Trata-se de um fenômeno circular. Uma seqüência de comportamentos deliberados por parte do agressor destina-se a desencadear a ansiedade da vítima, o que provoca nela uma atitude defensiva, que é, por sua vez, geradora de novas agressões”, analisa Marie-France Irigoyen.
O lado mais cruel desse tipo de sofrimento é que ele atinge o que se transformou no centro da vida do homem moderno. Mais do que fonte de sobrevivência, o trabalho constitui hoje a principal identidade do cidadão. Depois do nome, é a profissão, ou o emprego, que define o lugar do indivíduo no mundo. Por isso é tão dolorosa a experiência de ver seu trabalho ignorado ou desqualificado – além, evidentemente, do medo de ficar desempregado que a desaprovação do chefe provoca. O psiquiatra João Ferreira, diretor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub), cita uma pesquisa na qual foram entrevistados 1.800 funcionários do Banco do Brasil sobre suas condições de trabalho. A queixa principal, surpreendentemente, não foi a de excesso de serviço ou de salário baixo. “A esmagadora maioria das reclamações referiu-se à falta de reconhecimento. É isso que incomoda mesmo, causa ressentimento e rancor”, diz Ferreira.
O assunto pega fogo na internet, onde existem dois sites exclusivamente dedicados a esse tipo de conflito (http:// www. assediomoral.f2s.com/index2.htm e http://www.assediomoral.org), que recebem centenas de relatos por mês. O presidente da Yahoo! no Brasil, Bruno Fiorentini, é um que quase sucumbiu à pressão de seu primeiro chefe, numa grande multinacional com sede no Rio de Janeiro. “Ele queria me convencer de que eu era incompetente, e podia ter conseguido”, lembra Fiorentini, que carregou para a empresa que hoje dirige uma grande preocupação em fechar os espaços para abusos de chefias. Na Yahoo!, foi instituído um sistema de avaliação múltiplo. Cada diretor é avaliado por outros diretores, pelos gerentes que lhe são subordinados e pela presidência. “Isso dificulta muito as injustiças que podem acontecer quando a comunicação está restrita a um único chefe”, diz. Essa é uma tendência em boa parte das grandes empresas, que já incorporaram à sua administração a idéia de que o relacionamento humano está diretamente ligado à produtividade.
           “O Coral Sinfônico tinha 76 pessoas, todas concursadas. Quando a nova regente assumiu, em 1995, começou um processo de reestruturação. Foi a pior época da minha vida. Eu acordava com vontade de morrer só de imaginar que tinha de encarar um trabalho que antes me dava o maior prazer. A gente só trabalhava sob ameaça de demissão, sem que ninguém informasse quais seriam os critérios para manter uns e dispensar outros. O discurso era cruel. “Vamos mudar, enxugar, melhorar a qualidade, aumentar salários. Mas não com vocês, que são uns incompetentes.” O trabalho de todos era desrespeitado, depreciado. Era humilhação e arbitrariedade todos os dias. Comecei a ficar doente, não só pelo que acontecia comigo mas também pelo que via acontecer à minha volta. Tinha insônia alternada com um sono incontrolável, que me impedia de levantar da cama. Minha resistência física acabou. Vivia gripada e acabei pegando uma pneumonia. O stress foi tanto que de repente me vi sem voz. Da composição original do coral, só restam hoje 24 pessoas.” Márcia Regina Soldi, 28 anos, é cantora lírica e fez parte durante seis anos do Coral Sinfônico do Estado de São Paulo, de onde foi demitida em setembro do ano passado “É fundamental ter habilidade para lidar com gente, para não perder a contribuição que cada um pode dar a qualquer projeto”, diz Antonio Carlos Martins, diretor da Perfil Consultores, a maior consultoria de recrutamento de executivos do Rio. Em sua rotina de entrevista com candidatos a postos importantes em grandes companhias, Martins já percebeu que a preocupação existe dos dois lados. As corporações fazem uma série de exigências e consideram inaceitáveis alguns defeitos em seus chefes. Os candidatos, por seu lado, querem saber qual é a organização, seu porte, sua importância no mercado e também quem será seu superior imediato. “Eles sabem que na vida profissional um mau chefe pode provocar prejuízos irreversíveis à carreira”, afirma. Mas, se as empresas andam tão preocupadas com esse aspecto – e têm efetivamente tomado medidas para melhorar o ambiente de trabalho –, por que o chefe carrasco ainda está tão presente? A diretora de recursos humanos da Xerox do Brasil, Priscila Soares, é pragmática. Antes de iniciar qualquer análise, ela ressalva que, do lado do subordinado, existe um desejo irrealizável de trabalhar sem pressão. “Num mundo competitivo como o nosso, não há como fugir da pressão, das metas, da busca por melhores resultados. Não adianta ser contra ou a favor, tem de encarar”, diz.
 É verdade que o panorama da economia mundial é para lá de desfavorável. Os índices de desemprego não param de crescer, e o fantasma da falta de trabalho é mais assustador que qualquer problema no emprego. Isso não significa, contudo, que as empresas não tenham responsabilidade sobre os abusos cometidos por seus chefes. Priscila admite que normalmente as companhias subestimam essa função. “Um gerente precisa conhecer muito bem o funcionamento da empresa e ter um bom relacionamento com as pessoas. Muitas vezes se privilegia uma perna só”, avalia. Aliás, nestes tempos de descoberta da importância das relações humanas para a produtividade, o erro mais freqüente é dar excessiva importância ao bom relacionamento e deixar de lado a capacidade gerencial propriamente dita. “O resultado é um desastre. Afinal, ninguém respeita chefe bonzinho”, diz Priscila, ela mesma classificada por alguns de seus comandados como “um trator”. O aspecto curioso da situação é que, observados sob outro ângulo, os chefes também são vítimas da pressão no trabalho – de certa forma até mais que seus subordinados. Na organização moderna das empresas houve uma pulverização do poder. Há mais chefes hoje que na rígida estrutura piramidal que vigorava até pouco tempo atrás, e cada um deles tem menos poder. Portanto, existe também uma competição horizontal. “Houve uma falsa distribuição de poder, fazendo com que a posição da chefia seja a mais ameaçada”, observa a psiquiatra Silvia Jardim, do Ipub. Além disso, é sobre os chefes intermediários que recai a maior cobrança. Ele fica espremido entre a cobrança cada vez mais implacável de metas por parte da direção da empresa e o medo de que seus subordinados não sejam capazes de atingir os objetivos. Quando a equipe do Ipub fez a pesquisa sobre as condições de trabalho no Banco do Brasil, foram ouvidas pessoas em todas as posições hierárquicas – caixas, atendentes, funcionários da compensação, chefias intermediárias e superintendentes. A constatação foi que a maior carga de trabalho estava nas chefias intermediárias. “É um pessoal que não tem horário, se for preciso prorroga o expediente e é quem toca adiante a pressão por desempenho”, diz João Ferreira, diretor do Ipub. Como se não bastasse, boa parte dos chefes faz ainda uma confusão fatal. Acham que são meio donos da empresa onde trabalham. Quando são demitidos, ou rebaixados, passam por uma grave crise de identidade.
Do céu ao inferno “Quando fiz o concurso do Banespa, em 1978, passei em primeiro lugar. No começo tudo andou bem. Quando mudei de agência, começou o inferno. Eu tinha adquirido tendinite nos dois braços e não podia mais cumprir algumas funções. Fui transferida para a área de vendas externas. Eu andava o dia inteiro e na volta ainda fazia algum trabalho interno. Quando reclamava de dor, o chefe dizia que eu estava nervosa, que isso era falta de homem, que eu era uma ovelha negra, que não servia para nada. Ele dizia: ‘Você está com algum problema? Sinto muito, todo mundo tem problemas’. Comecei a acreditar que era incompetente, ou louca.” Maria Antônia Rebelo, 44 anos, trabalhou no Banespa/Santander por 23 anos e meio. Foi incluída no último PDV do banco, em maio deste ano. Com os 40 000 reais que recebeu, pretende comprar uma casa no interior Com raras exceções, desmandos de chefia têm o aval da empresa, nem que seja por omissão. A psiquiatra Silvia Jardim considera que o conflito é inerente ao trabalho, mas a humilhação é simplesmente abuso de poder – e, como tal, não deve jamais ser tolerada. A companhia que não age para coibir esse tipo de ação é co-responsável pelas conseqüências. A psiquiatra lembra que já houve tempo em que as empresas não se responsabilizavam pelos danos físicos do trabalho. Até o fim do século XIX, não se falava em saúde nas fábricas. Perdiam-se pedaços do corpo em acidentes, e o trabalhador ficava totalmente desamparado. Em 1890 surgiu, nas minas de carvão da Inglaterra, a figura dos delegados de segurança e só quase trinta anos depois, em 1919, se formou o conceito de doença profissional. A saúde mental só começou a merecer alguma atenção das empresas no final do século XX, quando os problemas decorrentes da organização do trabalho começaram a comprometer a produtividade. Hoje, existe uma lista de distúrbios psíquicos que podem ser considerados como doenças relacionadas ao trabalho. Entre elas, algumas manifestações de alcoolismo crônico, episódios depressivos, síndrome de fadiga, transtornos do ciclo do sono e, no limite, o burnout, nome técnico da síndrome do esgotamento profissional, uma espécie de blecaute provocado por excesso de stress. “No início da Revolução Industrial foi preciso dar atenção aos limites físicos do homem para conter a mortalidade nas fábricas. Agora, o mesmo tem de acontecer com os limites psíquicos”, conclui Silvia Jardim. Caindo em desgraça “Para um executivo, o que pesa é a possibilidade de desenvolvimento futuro e o apoio de quem está acima. Você quebra um profissional arrebentando com esses dois fatores – as perspectivas e o reconhecimento. A tática é terrível. Meu chefe parou de me cumprimentar, me deixava esperando por horas a fio, me fazia sentir invisível. Eu não tinha mais as informações de que precisava para trabalhar. Numa situação dessas, os que estão a sua volta começam a perceber o que está acontecendo e rapidamente todo mundo se reposiciona. Você caiu em desgraça. Acabei com lesão no rim esquerdo por causa de hipertensão. Em seis meses, tive três entradas na emergência por pique de pressão e engordei quase 10 quilos. Hoje tomo uma medicação fortíssima contra stress e depressão. Sei que fiz um trabalho excepcional, tanto que, quando saí, esse mesmo chefe se apropriou de todas as minhas idéias. A intenção deliberada dele era me humilhar. Você se prepara para competir com seu colega do lado, mas não com seu chefe. O triste é que, na atual crise de emprego, a gente acaba engolindo esses sapos por mais tempo. Para cada um que sai, há cinqüenta esperando.” Ex-executivo de uma grande companhia prestadora de serviço público, 56 anos. Foi demitido em junho e continua desempregado.
Post do blog http://acordocoletivo.wordpress.com/

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